Chiaroscuro sob o sol

Desde o Renascimento, a técnica do Chiaroscuro (claro-escuro) tem como base o mistério, a profundidade e o realismo. A partir de seu entendimento, a cuidadosa manipulação dos pontos de luz, aliada ao pensamento poético-artístico, tornou-se uma ferramenta capaz de iluminar as mais profundas memórias, sentimentos e sensações, muitas vezes incapazes de tradução simplista. No abstrato, a penumbra evoca o desconhecido ou o oculto pelo inconsciente; no físico, ao deparar-se com a escuridão, o olho humano procura significados, formas e definições, abrindo portas e janelas para um universo místico.

No conjunto de obras apresentado pelos artistas Gustavo Diógenes e Thadeu Dias, claridade e crepúsculo se encontram e desencontram em territórios comuns de mentes diversas. Enquanto um se dedica às noites pouco iluminadas das pequenas cidades do sertão cearense com o clássico óleo sobre tela, o outro explode em cores oceânicas no cromatismo vibrante do pastel-seco. Frente a frente, seus trabalhos demonstram a capilaridade e a adaptabilidade do senso artístico em ver e perceber vivências que se assemelham, mas que se transformam e emergem com distinção. Mesmo que tenham percorrido os mesmos caminhos, suas referências e urgências fazem com que suas criações em tela e papel sejam únicas.

“Fogo-fátuo” e “Paisagens de Acostamento” são os nomes das séries de Gustavo Diógenes. “Fogo-fátuo” refere-se a uma reação química resultante da decomposição de matéria orgânica, que libera uma pequena chama serpenteante – um ponto de luz em meio à penumbra. “Paisagens de Acostamento” nasce das observações feitas durante viagens pelo interior do estado a caminho da praia, acompanhando seu pai. Apesar de pertencerem a grupos diferentes, os trabalhos evocam o mistério e a estranha familiaridade de cenários adormecidos em memórias e sonhos passados. A evidente ausência de corpos humanos em suas pinturas nos faz questionar e, assim como o olhar humano no breu, procurar sentido. Onde estariam essas pessoas? Será que aconteceu alguma coisa? O que estarão ou estariam fazendo?

Ao alcançarmos o mar, nos deparamos com Thadeu Dias. A policromia refletida pela luz solar nos sugere que nada está oculto; tudo se mostra. No entanto, o artista desafia essa percepção e nos convida à sua (ir)realidade fantástica, repleta de símbolos e significados. Sua pintura representa um universo onírico, onde a lógica escapa. O corpo desprotegido encara e se entrega, e, quando nos damos conta, já estamos completamente imersos. Cada traço do pastel é como uma trilha arenosa em um mapa do tesouro, onde o destino final é único na jornada pessoal de cada indivíduo. À deriva nessa paisagem irreconhecivelmente conhecida, tentamos nos ancorar em figuras familiares – peixes, barcos, folhagens – apenas para percebemos que, assim como o artista, também estamos despidos.

O pulsar do inconsciente nas obras de Gustavo Diógenes e Thadeu Dias se entrelaça em um jogo fascinante entre mistério, o fantástico e o onírico. Nessa dança singular, o claro e o escuro se entrecruzam, numa fusão entre a noite e o dia do Ceará – o Chiaroscuro sob o sol.

Felipe Barros de Brito
Curador

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